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PREFEITURA DO RECIFE

SECRETARIA DE POLÍTICA URBANA E LICENCIAMENTO

INSTITUTO DA CIDADE PELÓPIDAS SILVEIRA

GERÊNCIA GERAL DE NORMATIZAÇÃO 

UNIDADE DE INSTRUMENTOS NORMATIVOS

 

Instrumentos Urbanísticos: uma história de lutas

 

Recife, agosto/2022

 

 

 

O Município do Recife aprovou, no presente ano de 2022, as leis que regulamentam os seguintes instrumentos urbanísticos indispensáveis à garantia do cumprimento da função social da propriedade urbana e ao desenvolvimento das funções sociais da cidade: a Outorga Onerosa do Direito de Construir -OODC (Lei nº 18.900); a Transferência do Direito de Construir -TDC (Lei nº 18.901) e o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios - PEUC e Sucedâneos  (IPTU Progressivo no Tempo e Desapropriação com Títulos da Dívida Pública), estes últimos por meio da Lei nº 18.966. Importante destacar que se trata de um longo processo de lutas sociais travadas há mais de 60 anos neste país, e a cerca de 30 anos em nossa cidade, objetivando a regulação e aplicação de instrumentos urbanísticos que contribuam para a implementação de políticas públicas que propiciem a justiça e equidade socioterritorial, conforme pequeno histórico que passamos, a seguir, a comentar.

Estes instrumentos urbanísticos têm como marco regulatório e alicerce jurídico a determinação de nossa Constituição Federal de 1988 (arts.5º, XXIII, e 170, III) de condicionar a propriedade urbana ao cumprimento de sua função social. Rompendo, assim, com a concepção até então privatista, individualista dessa propriedade urbana, passando a conferir-lhe uma função de caráter público, visando ao interesse coletivo, sobrepondo este ao interesse privado. E a Constituição, no art. 182, §2º, preceitua que esta função social será cumprida quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, o qual constitui o instrumento básico da política urbana cujo objetivo maior é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. 

A aprovação das leis específicas em referência também se fundamenta nas disposições da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade (EC), que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição, que tratam da política urbana. Por sua vez, há que se frisar que o Estatuto da Cidade resultou das inúmeras discussões e debates realizados, por décadas, em todo o país acerca da necessidade premente de promoção de uma reforma urbana no Brasil, em face de nosso processo de urbanização caracterizado pela falta de acesso à terra urbanizada, pelas carências habitacionais do ponto de vista quantitativo e qualitativo, assim como pela retenção especulativa dos terrenos, acarretando, de um lado, a formação e o crescimento das periferias e, de outro, a valorização dos terrenos mais centrais, apropriados por poucos, configurando, assim, um cenário de profunda injustiça e desequilíbrio socioespacial. Concomitante a esse processo de ocupação, houve o esvaziamento dos centros. Primeiramente, de sua função habitacional, com a transferência para bairros mais distantes, e, mais tarde, o espraiamento da função comercial, em menor escala, e até de serviços, em alguns casos, devido ao surgimento de galerias, edifícios empresariais e centros de compras de grande porte em outras áreas da cidade. Esse segundo processo trouxe a ociosidade e deterioração de muitos imóveis no centro, com o agravante do impacto provocado à paisagem urbana e, notadamente, à cultura tanto em âmbito local, quanto, em muitos casos, em nível estadual e até nacional, haja vista que um número expressivo desses imóveis é classificado como patrimônio cultural.   

Essas questões vêm sendo debatidas há quase 60 anos. O Seminário de Habitação e Reforma Urbana, promovido, em 1963, pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e pelo então Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (Ipase), órgão do governo federal, discutiu e formulou várias propostas de natureza urbana, de maneira geral; e de habitação, em particular, trazendo orientações para uma Política Nacional de Habitação e Reforma Urbana. As propostas, entretanto, foram abortadas pelo regime militar, que assumiu o governo após o golpe de 1964. Tais problemáticas voltaram a ser discutidas e compuseram o Anteprojeto da Lei de Desenvolvimento Urbano de 1976, divulgado em 1977, elaborado por iniciativa da Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU)

O anteprojeto já continha as ideias que estão presentes no Estatuto da Cidade, prevendo, logo no seu art. 1º, o condicionamento do uso do solo e do direito de construir à função social da propriedade, assim como o controle da utilização da propriedade, visando, especialmente, a impedir o uso prejudicial ao desenvolvimento urbano, a verticalização excessiva ou desnecessária em relação à infraestrutura existente ou planejada. Além disso, estabelecia que o proprietário tinha o direito de construir a área equivalente à do lote e o município poderia permitir construção de área excedente à do terreno, de forma remunerada, ou seja, já definia que o coeficiente de aproveitamento do terreno seria igual a 01 (um). Não havia referência ao termo solo criado, que consiste na possibilidade de construir acima do coeficiente básico de aproveitamento, conforme disposto na legislação urbanística, mediante o pagamento de contrapartida onerosa (outorga onerosa do direito de construir). Outro assunto destacado era a previsão da urbanização compulsória como instrumento para condicionamento da propriedade à sua função social. Entretanto, convém ser registrado que o anteprojeto em apreço foi criticado tanto pela direita como pela esquerda, assim como pelo setor imobiliário e por profissionais de engenharia e arquitetura, não produzindo efeitos positivos de imediato.

Na mesma época desse anteprojeto, foi promovido um seminário reunindo vários urbanistas e juristas, o qual teve como produto final a Carta do Embu, a qual recomendava que o Município poderia fixar um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos e estabelecer índices diversos de utilização através do zoneamento. E, ainda, toda edificação acima do coeficiente único seria considerada solo criado, quer envolvesse ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo. O documento propunha que o interessado entregasse ao poder público áreas proporcionais ao solo criado. Quando fosse impossível a oferta dessas áreas, por inexistentes ou por não atenderem às condições legais para tanto requeridas, seria admissível sua substituição pelo equivalente econômico. 

Em 1983, foi elaborado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU, que substituiu a CNPU, o PL 775/83 – Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano ou do Solo Urbano, originado do anteprojeto de lei anterior (com alterações e adequações) e de outras discussões, que foi enviado ao Legislativo. Houve versões substitutivas e discussões, mas o projeto de lei ficou no Congresso Nacional até ser retirado em 1995, pois já estava em tramitação o Projeto de Lei do Estatuto da Cidade, sancionado em 2001. Esse Projeto de Lei também definiu que a propriedade imobiliária urbana deveria se adequar à sua função social e procurou inibir a ociosidade do solo urbano edificável. Para tanto, já estabelecia o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, entre os seus instrumentos. Porém, a nova ordem jurídica de caráter urbanístico foi estabelecida na Constituição Federal de 1988, como já abordado. 

O solo criado, explícito ou não nessas propostas, trazia à discussão outro instrumento – a transferência do direito de construir – TDC. Esse instrumento necessita do solo criado para poder se concretizar. Com base neste instrumento, o proprietário que tem o seu direito de construir restringido pela legislação urbanística pode exercê-lo em outro lugar, desde que permitido pela legislação e somente podendo fazê-lo se houver a possibilidade de utilizar um potencial construtivo adicional em outro lugar. 

É importante ressaltar o ponto em comum dessas propostas com a do Estatuto, que é a perspectiva da função social da cidade e a separação do direito de propriedade do direito de construir, conforme previsto na Constituição Federal, sendo este último concedido pelo poder público municipal, de acordo com legislação específica. 

Cabe-se ressaltar que, após a promulgação da Constituição de 1988 e a despeito da ausência de uma legislação federal que regulamentasse a política urbana que ela preceituava, o Município do Recife promoveu debates que iam ao encontro das discussões nacionais. Neste sentido, cumpre-se realçar a Lei Orgânica do Município, promulgada em 1990, a qual já previa, entre os instrumentos de política urbana, o parcelamento e a edificação compulsórios (PEUC), fruto também de um processo de discussão para redação dos Termos de Referência do Plano Diretor de Desenvolvimento da Cidade do Recife - PDCR, produzido em 1989. A destacar o texto que estipula o plano diretor como instrumento norteador da ação municipal com vistas a promover “a definição da configuração urbanística da cidade, orientando a produção e uso do espaço urbano, tendo em vista a função social da propriedade”. 

Atendendo à legislação maior do município (Lei Orgânica), o PDCR – Lei 15.547/1991, o primeiro elaborado por exigência da Constituição de 1988, além de já prever, portanto, a função social da propriedade urbana, definia o parcelamento ou edificação compulsórios, a taxação progressiva e a desapropriação dos imóveis (PEUC e sucedâneos) que não estivessem atendendo à função social da propriedade urbana. Não houve, contudo, a aplicação do instrumento, por não ter sido regulamentado, em âmbito municipal e federal. 

A Lei Orgânica, seguindo a Constituição Federal, também define, no seu artigo 108, que “o direito de propriedade sobre o solo urbano não acarreta, obrigatoriamente, o direito de construir, cujo exercício deverá ser autorizado pelo Poder Executivo, segundo os critérios estabelecidos em lei municipal”. A partir daí, a lei define a Transferência do Direito de Construir – TDC, instrumento regulamentado por lei municipal para os Imóveis Especiais de Preservação – IEP, no ano de 1997 (Lei nº 16.284/1997).

Na mesma perspectiva das discussões que alimentaram as propostas de 1976 e 1983 sobre a valorização imobiliária, apropriada por poucos, o Plano Diretor propunha a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos. Nesse sentido, o projeto de lei do PD propôs a adoção do coeficiente de aproveitamento único e unitário, definindo o solo criado e a outorga onerosa para as unidades urbanas com potencial de adensamento construtivo. Após discussões no Legislativo e depois da forte pressão do mercado imobiliário, que culminaram com a elaboração de um substitutivo, permaneceram os conceitos do instrumento e a aplicação foi adiada para ser discutida na revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 16.176/1996). Vale dizer que essa última legislação não concretizou o que vinha sendo discutido. A Transferência do Direito de Construir, que precisa de um imóvel receptor que acolha potencial construtivo adicional, ficou só como discurso e sujeita à regulamentação posterior, que aconteceu somente para os IEP – Imóveis Especiais de Preservação Histórico-Cultural. 

Em 1997, houve nova tentativa de aplicação dos instrumentos PEUC e sucedâneos, com a Lei Municipal 16.291/97 – Plano Setorial de Edificações e Instalações. O plano definiu que as obras, inacabadas ou paralisadas há mais de 02 (dois) anos, estariam sujeitas à edificação compulsória, à taxação progressiva e à desapropriação. 

No que se refere à adoção do coeficiente de aproveitamento único e unitário, nova tentativa aconteceu no projeto de lei do plano diretor, que foi discutido na conferência do plano em 2005. Entretanto, a ideia foi abortada, mais uma vez, pelo substitutivo elaborado pelo próprio executivo municipal e discutido no legislativo. O coeficiente único e unitário deu lugar a diversos coeficientes básicos, diferentes de 01(um), o que veio romper com a ideia de que todos teriam o mesmo direito de construir e possibilitando a continuidade da valorização diferenciada, em partes da cidade, de acordo com os parâmetros do zoneamento. A outorga onerosa ficou restrita a uma única zona da cidade. A Transferência do Direito de Construir – TDC ficou estabelecida enquanto conceito, mas de difícil operacionalização.

Finalmente, após 30 anos de tentativas, os instrumentos urbanísticos Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC, a Transferência do Direito de Construir – TDC, assim como o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios e sucedâneos foram definidos no Plano Diretor em vigor, ao lado de outros. A regulamentação desses instrumentos foi construída pelo Instituto da Cidade Pelópidas Silveira - ICPS, órgão responsável pelo planejamento urbano na Prefeitura, após discussões com a sociedade, através do Conselho da Cidade e, também, em audiências e oficinas públicas, e foi estabelecida pelas Leis nº 18.900, 18.901 e 18.966, todas editadas neste ano de 2022.